24 de agosto de 2015

A viagem pelas coisas que não estão lá...

Penso que a arte de viajar consiste em fazer da estrada uma conselheira e do destino um tribunal. Viajar implica desprezar por aquilo que somos, pois só assim podemos melhor compreender o que a estrada nos diz. Não interessa se a viagem é pequena ou continental, não interessa se o destino é banal ou singular, no fundo, viajar não depende da distância do trajecto mas sim da distância entre o que somos e aquilo que a viajem nos faz.

Neste último fim-de-semana percorri uma estrada de contornos familiares que me levou a um local simples, mas ainda assim foi uma viagem. Deixei que o vento rejuvenescesse a alma a cada rotação do pedal. As casas de perfeição assustadora desfilavam em carrossel acelerado, ora à esquerda ora à direita (mas mais à esquerda), trazendo imagens de outras casas menos perfeitas, na verdade verdadeiras ruínas, em países tão distantes que só aparecem na televisão. A guerra mais próxima está a 2000km de distância, a morte também, a fome a 7000 e o terror a 4000, dizem. Todos os problemas do mundo parecem distantes o suficiente desta estrada para não incomodar. Tudo é calmo, limpo e o pedalar faz-se sem esforço. Esquece, esquece, repito para mim mesmo.Mas as sombras não largam o trajecto que à partida parecia tão solarengo. Na estrada de Potsdam a Werder, uma migalha num mundo de estradas, os carros transformam-se em pão que de certo faz falta mas não aqui, os abraços entre pessoas são boias vermelhas que nos salvam do afogamento Mediterrâneo, um carro de recém nascido à prova de explosão. É a marcha da vida? Talvez... Que podemos fazer? Pedalar, pedalar sem parar, porque Werder aproxima-se e a viajem, essa coisa boa, cessa, morre por agora. 


Sento-me num pequeno pontão a comer um gelado. Deito-me nas tábuas que ondulam por empréstimo da água e adormeço por breves momentos, os suficientes para me esquecer onde estou. O vago sono é interrompido pelos pelos pés de uma criança que me faz levantar a cabeça. Pergunta-me se estou doente, carregando nos olhos o brilho natural de quem teve a sorte de nascer ali, ou talvez numa das estradas perto. Um olhar cuja esperança se estende sobre um futuro imenso e brilhante, tal como o lago que nos sustenta. Respondo que não e solto um pequeno sorriso que engana toda a gente menos aquela criança. Os país chamam o pequeno para junto de si e eu retomo a solidão. Depois de me contentar com a paisagem volto à estrada. Não regresso pelo mesmo caminho, escolho outro, mais longo é certo, na esperança que este contenha menos sombras, menos casas, menos tudo, menos tudo e mais estrada... 






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