12 de julho de 2014

Armindo Monstro, continua...

Com o exercício de Armindo Monstro aprendi que um livro não se acaba, simplesmente se abandona. As ideias são intermináveis, constantes, a vontade de estender a acção é neste momento contraproducente e tento resistir-lhe com todas as forças. De modo a descomprimir, limito-me a limar as pequenas incorrecções que normalmente se amontoam num manuscrito que vai crescendo até à centena de páginas. Para hoje deixo-vos com um excerto entre Abílio Bicho e José Monstro, uma conversa unidireccional sobre política e autoestradas. 
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Depois de guardar o pente na sua carteira castanha escura, que não era de pele verdadeira mas que servia perfeitamente, Maria e Armindo desceram as escadas ao encontro de José. Este passara a última hora numa conversa unidireccional com Abílio Bicho a propósito dos terrenos vendidos para a construção de uma nova auto-estrada. Abílio Bicho defendia que a auto-estrada não era necessária, que a sua construção iria arruinar o pinhal de seu pai, o moinho do seu avó e o fontanário da sua juventude – local onde dera o primeiro beijo. José não expressara acordo ou desacordo com o que Abílio dizia, preferindo apenas acenar levemente a cabeça de modo a indicar que ainda estava a ouvir. A questão da auto-estrada era para José uma questão política e, por exclusão de partes, algo que não lhe dizia respeito. Ele não era pago para opinar sobre construções de auto-estradas mas sim para conduzir o carro da recolha do lixo, algo que fazia melhor do que ninguém. Se todos seguissem o seu exemplo, ou seja, se todos fizessem o trabalho que lhes é confiado de modo competente, todas as discussões inúteis sobre política podiam ser evitadas. José não se decidira sobre o que é melhor. Se um pinhal que arde a cada dois anos por falta de limpeza de Abílio ou uma faixa de asfalto que transporte bombeiros. Se um moinho que já não produz ou uma portagem que emprega. Se um fontanário cuja água ninguém usa ou um fontanário sem água alguma. Para Abílio o desinteresse de José pelos destinos da aldeia era uma incómoda provocação, o único trago amargo na personalidade de um vizinho que ele sabia ser doce.
Para suster uma discussão política são sempre necessários dois intervenientes igualmente ignorantes da complexidade natural que existe na sociedade. Para Abílio a decisão de construir uma auto-estrada era definitivamente má, para José era definitivamente impossível argumentar a favor ou contra. Tal residia na impossibilidade de se quantificar a totalidade, bem como a distribuição, dos benefícios e prejuízos associados a tal decisão. Desprovido de um interlocutor que suporte ou contrarie o seu ponto de vista, Abílio Bicho despede-se educadamente do seu vizinho, desejando-lhe o resto de um bom dia.

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