A menina de casaco
rosa senta-se e pede um café. Retira o telemóvel da mala que condiz
perfeitamente com o seu casaco, juntamente com uma folha de papel
onde vários números figuram. Está nervosa, espera por um cliente,
é provavelmente a sua primeira vez. Sabe da humilhação, antecipa-a faz já várias horas. Verifica os brincos com os dedos, os anéis com o
olhar. Ajusta a saia negra que lhe dá pelo joelho. Levanta-se com um
ar sereno, muito diferente daquele com que se sentou. Lá fora alguém
acena debaixo de um guarda chuva. Um casal de meia idade, isto é 35
anos, sim porque depois dos 70 a vida acaba, pelo menos para ele.
Ele, já agora, perfeitamente barbeado ao exponente da náusea,
indicação daqueles que têm tempo suficiente todas as manhãs,
imagine-se!, para se preocupar com o mais pequeno pêlo. Ela, clone de
tantas outras, ou seja, quase original. Quase, porque a virtude, se é
que esta existe, está escondida por detrás de persianas de riemel, véus
de perfume algo caro e um sorriso bonito, sim, bonito, há que
dizê-lo. Mas depois, não muito depois, todo o cenário se desfaz
quando se nota na nota da voz o vazio da frase, a inexistência de
opinião própria no timbre emprestado a uma qualquer personagem de
televisão. São um casal moderno, daqueles que agora proliferam.
Aqueles casais que ficam bem onde quer que estejam, que se comportam
adequadamente onde quer que vão, que nunca aborrecem. O que me
leva a reflectir se o casal se trata, penas e só, de uma peça
decorativa numa cidade que lentamente se transforma em conto de fadas especulativo. Por falar em fada... A menina de casaco rosa já os alcançou,
confiante de ter fintado todas as gotas de chuva que conspiram contra
a sua base. Que comece a humilhação... Uma escada, um terceiro andar,
dois quartos (no mínimo), um sorriso perene que é arma contra as mais
fúteis interrogações do casal. Parece que encontraram a felicidade
pela módica quantia de 825 € por mês, fora a electricidade para
os talkshows dela e a internet para a consola dele, um verdadeiro
achado! Da janela o casal parece agora desapontado, triste. Não avistam
água, só rua, onde está a água? É possível mudar o lago para
trás daquela esquina ali? Mais um sorriso, desta vez enorme, mais ou
menos do tamanho da ignorância do casal (caso tal seja possível).
Com água à porta vai sair mais caro e a felicidade vai ter que
ficar para outro dia, que tal quinta feira à tarde do outro lado da
cidade? A menina de casaco rosa senta-se e pede um café. Retira o
telemóvel da mala que condiz perfeitamente com o seu casaco,
juntamente com uma folha de papel onde vários números figuram.
Risca o primeiro... não sabendo mais se na cadeia alimentar imobiliária ela é presa ou predadora.
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