Um pequeno episódio semi-fictício. Espero que gostem.
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Fechando a quarta janela do segundo andar...
- Ó Rui, não achas irónico tudo estar a acontecer aqui, ao lado das ruínas?
- Quais ruínas chefe? Não quer antes dizer museu?
- Museu agora, dantes eram ruínas. Sabias que a expressão...
- Ó chefe, não estou interessado em histórias para ser sincero, estou mais interessado em saber a sua opinião em como proceder dada a nossa situação.
Ouvem-se vozes no corredor secular. Passos apressados ecoam uma sinfonia de cabedal negro em soalho de carvalho. Sebastião entra na sala onde o Chefe, Rui e Moreira mantinham uma conversa monótona. Enche o peito de ar, ajusta o casaco, levanta a cabeça e anuncia com voz firme a chegada de uma mensagem.
- Sebastião! Que surpresa ver-te aqui... Como vai a tua esposa?
Sebastião olha para o Chefe com um ar de estupefacção, pensando seriamente sobre o que é mais ridículo; a pergunta em si ou a ligeireza com que esta foi feita. Surpreendido, Sebastião responde calmamente mas com um tom desaprovador.
- A senhora vai bem obrigado, a minha pequena também, vai para a escola o ano que vem.
- Óptimo, óptimo. Gosto de ver a sociedade a evoluir sabes. Crianças a irem para a escola e receberem educação, crianças que no futuro tomarão o meu e o teu lugar.
- Chefe!?, interpela Sebastião, a mensagem...
- Sim, eu não me esqueci. Ora então deixa cá ler...
Sozinho no seu pensamento ia decifrando penosamente o manuscrito. Este era em tudo semelhante ao primeiro que tinha recebido algumas horas antes. Sabia que uma decisão tinha que ser tomada o quanto antes, mas sabia também que uma decisão errada teria consequências incalculáveis para as gerações futuras. Tentando sacudir por momentos a responsabilidade da sua resposta interroga Sebastião.
- Sebastião. Não achas irónico tudo estar a acontecer aqui, ao lado das ruínas?
Sebastião já não sabia o que pensar. Se o perguntar pela esposa lhe pareceu descabido, perguntar sobre a ironia dos acontecimentos causou-lhe um claro mal estar interno. Respondeu a muito custo que não conseguia discernir nenhum motivo para ironia.
- Sabes que em 1775, após o grande...
- Chefe, desculpe interromper mas não me posso demorar aqui.
Com um acenar de cabeça Sebastião regressa pelo mesmo corredor, repetindo quase matematicamente o número e a cadência dos passos que o haviam conduzido à pequena sala.
Rui estendia os braços sobre a mesa com um ar preocupado. As suas mãos tremiam, o seu cabelo perdera o lustre do dia anterior. Rui parecia agora dez anos mais velho do que na semana passada quando se encontraram para jantar após uma extenuante reunião. Moreira, no canto, parecia-lhe mais calmo, afável e confiante. Não fizera até agora nenhuma reivindicação, não tentara assaltar o cofre nem pedira para ser evacuado. Limitava-se a assinar despachos tal como faria num dia de trabalho normal, um empregado dedicado daqueles que já não existem em estado selvagem.
Rui não conseguia esconder o seu nervosismo. A cadeira cai no chão. Com um ar decidido confronta o chefe. Ergue punhos, fala alto e de modo quase disléxico. Desdobra-se em mil argumentos e hipóteses, cenários e conjunturas. De tempos a tempos leva a mão direita ao cabelo, tentando repor ordem na franja que lhe salta para os olhos insistentemente.
Fecha os olhos. Queria que todos desaparecessem, pensou. O Rui, o Moreira o guarda ali ao lado, o Sebastião e outros como ele, todos embora. Que bom seria estar outra vez em casa, bebendo chá acompanhado de uma torrada barrada com queijo da serra. Que bom poder evaporar o Rui. A sua atitude e incessante discurso atrapalhado materializava todos os defeitos da equipa que comandava. A ideologia barata, o nunca ter dúvidas, a retórica provinciana camuflada pelo discurso académico. Abre os olhos e para sua grande surpresa não vê ninguém. Será que o seu desejo se tornou realidade?
- Chefe, para baixo!!! Grita Rui escondido debaixo da mesa. Moreira também lá está, amedrontado e a agarrar o tapete com ambas as mãos.
- Dispararam sobre nós chefe, sobre nós. Para baixo agora.
Sem ligar importância ao que Rui dizia fez o seu caminho para a saída sala. Rui corre atrás do Chefe mas este pede-lhe que retome o seu lugar. O assunto apenas pode ser tratado por ele próprio e mais ninguém. Rui retoma o seu lugar na mesa. Os disparos cessam.
Não achas irónico tudo estar a acontecer aqui, ao lado das ruínas? Pergunta Chaves ao seu companheiro de secção enquanto enrola mais um cigarro e contempla o Quartel do Carmo.
- Ruínas? Não quer antes dizer museu ó Chaves?
- Museu agora, dantes eram ruínas. Em 1775, após o grande terramoto, eram apenas ruínas tudo o que restava dos conventos do Carmo e também do da Trindade, dai a expressão "cai o Carmo e a Trindade". Uma expressão adequada ao que se está a passar, não achas?
- Ó Chaves, deixa-te de histórias e anda mas é aqui para cima da Berlier que os gajos estão a sair, não queres ver pá?
- Que atrasado, pensa Chaves, será que ninguém me compreende...
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